domingo, dezembro 19, 2010

Pedro, vens amigo?

E se te disser que hoje não tenho nada para te dar, ainda me queres ao teu lado?

Se abrir este cesto que trago nas mãos, vazio de sorrisos, e te mostrar o fundo nu sem palavras que te alegrem ou abraços com que te aquecer e o silêncio que trago comigo nesta manhã de nevoeiro. Será que me deixas sentar, aqui ao teu lado?

Apesar dos dias que partilhámos e das papoilas que vimos nascer. Apesar das gaivotas em que sonhámos e do rio... o rio por onde corremos. Apesar das luas que já ouvimos e dos muitos ventos onde dançámos. Hoje não. Hoje não tenho forças me dar.

Anseio pelo teu calor, pela tua figura esguia balançando por entre o mundo das pessoas e o mundo das palavras onde vivemos, partimos e chegamos, sempre sem nos perder. Até o teu silêncio, que choca com o meu e se transforma em olhar cúmplice, me faz tanta falta como a água a este vaso seco da minha marquise onde as papoilas há muito não brilham.

Mas como aproximar-me se a minha luz já nem uma candeia acende para iluminar a noite que de mim nasce? Como chegar, assim, de mãos a abanar e esperar que me aceites sem nada, sem luz nem força nem alegria para te dar?

Enrolo-me e viro-me sobre mim própria como um cão atrás da cauda. Imagino-te espantado com o cinzento que me inunda as roupas e ensombra a expressão, intrigado com as dúvidas e medos e fantasmas e segredos. E até já te vejo, de sobrolho franzido, sem ouvires as palavras que grito no vazio do alto das minhas montanhas. E até te já oiço dizendo do meu exagero, da minha falta de coragem, da minha impaciência, da minha desistência, das minhas falhas, dos meus nadas que, hoje, trago para te dar.

E, por isso, não vou. Apago-me num sorriso falso que distribuo pelas tulipas também falsas (que papoilas verdadeiras só as trago nos dias de sol) com que encho o cesto que tenho nas mãos.
Por isso não vou. Visto-me com fardas de mil cores que afastam os olhares dos meus olhos vazios, e danço em volta das nuvens brancas que salpicam a tarde.

Por isso não vou. Disfarço-me num mar de palavras ocas que nunca me traem, e conto mil histórias de outras mulheres que não eu.

Gostava de te dizer que hoje não tenho nada para te dar, e saber que me respondias, sem fugas nem demoras - Vem! Vem só tu, vem vazia, vem com a noite e com o silêncio! Vem com os medos e falhas e inseguranças! Vem sem palavras nem cores nem danças! Mas vem... Vem porque te quero aqui, apenas porque sim, porque sou teu amigo!

Liliana





"Onde foste ao bater das quatro horas
e, antes, quem eras tu, se eras?
Amigo ou inimigo, posso falar-te agora
sentado à minha frente e com os ombros
vergados ao peso da caneta?
Falo-te sobre a cabeça baixa
e vejo para além de ti, no horizonte,
teus riscos e passadas;
mas não sei onde foste, nem se eras.
Olho-te ao fundo, sob o sol e a chuva,
fazendo gestos largos ou só um leve aceno;
dizes palavras antigas,
de antes das quatro horas,
e nada sei de ti que tu me digas
dessa cabeça surda.
Não te pergunto pela verdade,
que pensas de amanhã ou se já leste Goethe;
sequer se amaste ou amas
misteriosamente
uma mulher, um peixe, uma papoila.
Não quero essa mudez de condolências
a mim, a ti, ou só à terra
que tu e eu pisamos — e comemos.
Pergunto simplesmente se tu eras,
quem eras, e onde foste
depois que se fizeram quatro horas.

Será que não tens olhos? Não tos vejo.
De longe em longe
agitas a cabeça, mas talvez seja engano.
Palavra, não te entendo.
Amigo, a que vieste?"



"Amigo, a que Vieste?" de Pedro Tamen
in "Horácio e Coriáceo"

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Dá-ma a mão, João...


Eles deram as mãos, ligaram a aparelhagem com aquele LP já cheio de rugas, e deixaram-se embalar pela brisa morna das imagens que dançavam ao ritmo das noites passadas. A porta estava trancada, as janelas fechadas e o mundo inteiro ficara suspenso por entre a chuva que teimava em bater nos vidros.

O mar não entrou pela sala, deitando abaixo as paredes e criando um rio no meio deles. A terra não tremeu, abrindo frestas pelo chão e afastando um do outro. Nem as horas se atreveram a interromper a tranquilidade que o gira-discos cantava. E a vida, essa, limitou-se a suspirar enquanto eles, de mãos dadas, se espantaram com o admirável mundo que continuou a girar sem eles. Olharam um para o outro sorrindo e aprenderam a, apenas estar, sentir, acolher, respirar... viver!
Liliana



"Tenho livros e papeis espalhados pelo chão
A poeira de uma vida deve ter algum sentido
Uma pista, um sinal de qualquer recordação
Uma frase onde te encontre e me deixe comovido

Guardo na palma da mão o calor dos objectos
Com as datas e locais. Porque brincas, porque ris.
E depois o arrepio: a memória dos afectos
Que me deixa mais feliz

Deixa-te ficar na minha casa
Há janelas que tu não abriste
O luar espera por ti quando for a maré-vasa
Ainda tens que me dizer porque é que nunca partiste

Está na mesma esse jardim com vista sobre a cidade
Onde fazia de conta que escapava do presente
Qualquer coisa que ficou, que é da nossa eternidade
Afinal, eternamente.

Deixa-te ficar na minha casa
Há janelas que tu não abriste
O luar espera por ti quando for a maré-vasa
Ainda tens que me dizer porque é que nunca partiste"

"Deixa-te ficar na minha casa" - João Monge

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Deixa-me ver o céu de Lisboa, Alexandre...


Sabes porque os ponteiro giram sem parar nos dias em que queríamos parar o filme, desligar a televisão e mergulhar nos cobertores até o mundo se esquecer de nós? Porque somos os protagonistas da nossa vida e, neste palco, não há bastidores nem intervalo, as cenas sucedem-se de acordo com um guião que desconhecemos e que nunca controlamos.

Sim, eu também sinto a cabeça tonta nas manhãs em que acordo duma noite em branco recheada de sonhos confusos e muitas voltas na cama. Tomo duche e acordo os miúdos fingindo que o sol brilha por cima das nuvens cinzentas e corro pelo dia na esperança de encontrar o fio-condutor que me levou até esta peça.

Não te preocupes, porque até mesmo nos dias de vento e chuva, algures, brilha um arco-íris prontinho a levar-nos à terra de Oz. Há sempre uma forma de nos defendermos dos maus tratos dos diálogos, há sempre uma aliança possível de se realizar pelo bater dos calcanhares que, num ápice, nos afasta da acção e nos leva até ao calor duma lareira e à liberdade dum livro.

Sabes porque não param as nuvens e formam imagens que se desfazem para dar início a uma nova forma? Porque projectam no céu o verdadeiro filme de cada um. Projectam um código que apenas pode ser decifrado com o coração bem aberto e os olhos semi-cerrados. A chave, estou certa, está em saber aproveitar o vento e seguir a corrente que brota do mais íntimo de nós e desagua no monólogo mais complexo de sempre.

Não, neste palco não há bastidores e os intervalos dão-se apenas nas noites tranquilas de verão. Mas o facto de não controlarmos a acção e de desconhecermos o refrão da música que cantamos enquanto percorremos a estrada dos tijolos amarelos, não nos retira a voz com que nos apresentamos no dia das provas do guarda-roupa.

Vamos, esquece o relógio. Deita-te na relva e olha para as nuvens cinzento azul escuro, branco alaranjado, cinzento azul claro, vermelho rosado... abre o coração e vê o céu imenso que se despe para ti, apenas para ti, num desfile de mil estrelas com o final luminoso do início de dia e pede-lhe, baixinho, que te ajude a compreender!

Liliana


"Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
morreria no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração."

"Gaivota" de Alexandre O'Neill

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Há tanto mar Chico!

Corremos às voltas duma verdade universal, duma realidade que está sempre, ainda por concretizar.
Corremos, quais borboletas rodando em roda do candeeiro, procurando a lua que imita o sol no frio da noite.
Levantamos a mão para chegar ao arco-íris, mesmo sabendo que se desvanece assim que nos aproximamos.
Levantamo-nos ainda que a força de o fazer nos obrigue a colorir o peso que carregamos aos ombros.
Sorrimos até para quem não nos vê, esperando que no meio da multidão alguém, um dia, nos ofereça as flores de que mais gostamos.
Sorrimos quando queremos fugir e como não sabemos mudar o cenário, mudamos de personagem.
Acarinhamos a mão ao nosso lado ainda que saibamos, lá no fundo, que amanhã nos pode afastar.
Acarinhamos alguém apenas para sentir que, alguém nos consegue amar.
Cantamos para apagar o silêncio e pintar o que sentimos com a forma híbrida dos sonhos.
Cantamos para nos embalar quando o sono nos acorda do dia que sonhávamos.
E sonhamos, sonhamos mesmo quando estamos acordados, de olhos bem abertos para o que nos rodeia.

Porque sabemos que há muito mais mundo do que aquele que sentimos nas nossas mãos gastas.
Há muito mais realidade do a que, através da rede dos olhos, conseguimos ver.
Há muito mais música do que algum dia poderemos absorver, ouvir, dançar, cantar ou tocar...

Há tanto mar...
Liliana





"Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo pra mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também que é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim"
"Tanto mar" de Chico Buarque