sábado, dezembro 24, 2011

dos Natais de outros anos....

Acreditas no Pai Natal, António?

Pego no pinheiro enrolado numa espécie de meia de rede, daquelas que antigamente as senhoras ousavam usar para provocar os cavalheiros, e tento a custo equilibrar-lhe o tronco entre duas pedras grandes que de ano para ano servem de apoio à tão esperada árvore de natal. Entre desequilíbrios e quedas dou um salto na memória e vejo os pinheiros da minha infância que, sem esforço aparente, apareciam prontos a decorar na sala de jantar, onde eu e a minha prima mergulhávamos nas caixas de enfeites e descobríamos as bolas decoradas, e ainda de vidro, que diminuíam de número à força das nossas tão delicadas mãos, as luzes em feitio de vela que se apagavam se alguma lâmpada se fundisse e até as faixas farfalhudas douradas e prateadas com que, literalmente, vestíamos o coitado do pinheiro...

De repente o meu pinheiro, este verdadeiro, com resina e folhas que se espalham e tudo o que a natureza nos dá, parece-me tão pequeno. Os enfeites e bolas, estas de plástico para sobreviverem aos assaltos anuais dos miúdos, olham-me tristes e desengraçados. Até as luzes, que piscam e mudam de cor, me parecem demasiadamente impessoais.

Quando eu tinha o tamanho dos meus filhos mais velhos, o Natal estava coberto de um manto mágico que nem a mais dura realidade conseguia romper ou corromper. Via a azáfama e correria na cozinha com os olhos de quem quer acreditar no Pai Natal mesmo quando me diziam que ele não existia, e tudo me parecia um bailado de movimentos alegres e criadores, de onde nasciam filhoses e leite-creme e embrulhos e aletria e bacalhau e embrulhos e mesas arranjadas com copos de pé e embrulhos...

Enrolo o alguidar com a massa das filhoses e deixo-a fintar ao lado do aquecedor. Com as mãos cheias de farinha vejo-me do lado de dentro do teatro, onde as luzes estão penduradas por cabos pretos e o cenário colorido está debotado e remendado. A minha avó à porta da cozinha, também com as mãos enfarinhadas, suspira cansada. A minha mãe na sala, arruma as lágrimas ao lado dos copos de pé enquanto arranja os presentes em volta da árvore. Os meus tios, atrasados para o jantar, batem à porta com olhos cansados da correria e do trânsito.

Ao fundo do palco, o meu avô sorri. Olha-me através dos tempos e das luzes e das árvores de muitos natais. Ao fundo do corredor grande e comprido da cozinha ao escritório, chama-me ao seu lado. Sou do tamanho dos meus filhos mais velhos e está na hora de lhe dar a prenda que a minha mãe comprou. Ele dá-me a mão e abre o embrulho de mais um lenço com um "F" bordado. Está tudo tão perfeito que nem as lágrimas, nem os suspiros, nem os cansaços se atrevem a interromper, apenas a mesas com os copos de pé e o leite-creme e os embrulhos ainda à volta da árvore.

Ao fundo do corredor, o meu avô sorri e os seus olhos azuis iluminam o palco, dão cor ao cenário e alegram os focos.

Os meus filhos correm e brincam em volta do pinheiro que, aos poucos, se veste de festa. As filhoses estão prontas e luzidias no centro da mesa vestida, também, de Natal. Os embrulhos vão-se juntando longe da vista das crianças e na manhã de Natal aparecem, como que por magia, em volta da lareira. Afinal sempre me disseram que o Pai Natal não existe, apesar de o ter visto passar em frente da lua todas as vésperas de Natal!

Liliana a 22/Dez/2009



"Venho, torna-me velho esta lembrança!
D'um enterro d'anjinho, nobre e puro:
Infancia, era este o nome da criança
Que, hoje, dorme entre os bichos, lá no escuro...

Trez anjos, a Chymera, o Amor, a Esperança
Acompanharam-n'o ao jazigo obscuro,
E recebeu, segundo a velha usança,
A chave do caixão o meu Futuro.

Hoje, ambulante e abandonada Ermida,
Leva-me o fado, á bruta, aos empurrões,
Vá para a frente! Marcha! Á Vida! Á Vida!

Que hei-de fazer, Senhor! o qu'é que espera
Um bacharel formado em illuzões
Pela Universidade da Chymera?"

"Ai de Mim! " de António Nobre, in 'Só'